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O peso das dores do mundo



E eu vou! Esquecer de tudo As dores do mundo Não quero saber Quem fui Mas sim quem sou E eu vou! Esquecer de tudo As dores do mundo Só quero saber do seu Do nosso amor

Acordei com a canção do Hyldon na cabeça. A letra passava na mente revelando “a sua mentira” para o meu momento. Não posso nem consigo esquecer as dores do mundo. Seu peso está sobre minhas costas.


Ando meio encurvado até o banheiro e o espelho revela os reflexos da noite mal dormida. A idade há muito se manifesta em meu reflexo, mas os cuidados caseiros com a barba e o cabelo além das olheiras entregam a minha precariedade. Mesmo assim a aparência pouco revela da tamanha dor armazenada.


Dor que vem do mundo em pandemia. Vidas perdidas, famílias enlutadas, pessoas distantes dos seus. Essa é a parte previsível, infelizmente, de uma situação com essa gravidade. Mas além da própria doença e suas consequências há ainda a manifestação da cretinice abundante na humanidade.


A doença e a vida jogadas na vala comum da política rasteira.


Procedimentos tecnocratas desumanos obrigam pessoas a se aglomerarem em filas de banco inexplicáveis.


As brigas nas redes sociais como se houvesse escolha entre vidas e dinheiros, entre democracia e autoritarismo, entre liberdade e instituições fechadas.


Em quase todas as cidades do mundo a morte vagueia por ruas vazias buscando as próximas vítimas. Mas no Brasil a morte até se surpreende, pois enfrenta congestionamentos no trânsito de cidades que deveriam estar paradas.


Um dia morre um conhecido. Depois um artista que você gosta. Logo um escritor e um compositor que você admira também se vão. De alguma forma minha família e amigos próximos estão preservados, mas até quando?


Sou um homem de fé e de princípios renovados e fortalecidos pela minha crença. Mas sou humano sujeito a dores e tempestades, como qualquer um.


Coloco o Ipod pra tocar e logo a chuva púrpura do Prince ecoa pela casa. Percebo que canto o refrão e que lágrimas escorrem. Na altura do solo da guitarra elas já me inundam e decido sair. Preciso de ar, hoje não dá para ficar em casa. Fui um bom menino esse tempo todo, recluso e comportado e ontem Portugal começou a flexibilizar as regras. Posso sair sem ser irresponsável.


Prince ainda canta enquanto imagino o Tejo e decido o meu destino.


Sairei caminhando, é o que preciso.


Obrigado Prince mas agora a trilha será do Stevie maravilhando meus passos.


Desço as escadas com “Superstition” alucinando. Impossível não descer no ritmo e ganho a rua me achando em um musical do cinema. Danço mentalmente pois o recato e a timidez me impedem de fazê-lo nas calçadas, afinal as poucas pessoas mascaradas que cruzo não precisam achar que agora tem um maluco na vizinhança.


Eu queria estar dentro de um musical agora. Penso em “Fame”, Irene Cara e a galera dançando pelas ruas de NY. Mas não, a escolha seria “The Blues Brothers”, perfeito! E ainda estou com um físico apropriado a interpretar o Jake.


Mas quem comanda meus passos é Stevie Wonder. Hoje meus fones são dele.


Minha playlist é variada e logo começam os primeiros versos de “I Believe (When I Fall In Love It Will Be Forever)”, me trazendo de volta a mim:


Sonhos destruídos, anos perdidos, Aqui estou eu, preso em uma concha oca e vazia A vida começou, e então, de repente, tinha acabado Agora estou encarando o vazio e o frio também


Mas apesar de tudo o ar fresco e a voz do Stevie me enchem de esperança. O amor vence e convence. A distância da pessoa amada não será eterna pois corações distantes ainda batem alinhados.




Sigo passos lentos, cautelosos. Não quero que um tropeção atrapalhe meus momentos de contemplação das ruas e praças, edifícios e árvores sob o lindo céu azul da primavera de Lisboa.


“You are the Sunshine of my life” dita o ritmo agora e talvez meu corpo baile imperceptivelmente pelas calçadas. A timidez já se foi pois cantarolo junto, sentindo o sol esquentando a nuca e os braços desnudos. A vontade era estar nu e aquecido inteiro pelo sol, mas a loucura não chega a tanto.


“For once in my life” traz novamente a sensação de estar num musical. Ah se eu tivesse a chance de nascer de novo talvez eu fosse um dançarino ou musico ou até um auxiliar de produção num musical qualquer. Eu escolheria a arte antes de qualquer negócio.


Andei umas duas horas, a trilha sonora foi e voltou, encantou e iluminou. O que seria da vida sem a música?


Volto para casa melhor, tanto que decido escrever. Falarei sobre as músicas que inspiraram meus passos, mas logo começo a me conectar a outras. Aretha vem com “Think” e aí me acabo de dançar. Não estou mais sob olhares estranhos na rua, estou sozinho em meu palco e dane-se. Se vizinhos olharem pela janela entenderão a loucura que acomete um homem em isolamento.


A máquina sexual de James Brown rompe as últimas resistências e sigo dançando. Chega de pensar, chega de sentir. Que o meu sacolejo jogue fora a carga nos ombros porque afinal ela não é minha. As dores são do mundo, parte minhas também, mas eu não as quero. Não hoje nem agora. Danço e que a música leve o peso. Como Davi a frente da arca danço para que Deus seja tocado e alivie a carga. E funciona.


Não podiam faltar os Blue Brothers, pois foi por seu filme que perambulei, e “Sweet Home Chicago”. Danço até acabar a energia, que era pouca, mas agora bem aproveitada.


Basta agora. Com o corpo cansado e o espírito renovado volto ao computador para dar forma a essa minha loucura. Dançar ajuda, caminhar é essencial, mas só escrevendo que exorcizo de verdade essas dores. E hoje preciso concluir tudo, pois não quero as dores novamente.


Sei que o refrigério será provisório, mas é o que dá. O mundo permanecerá louco, o vírus correrá solto, os políticos serão ainda mais toscos. Mas eu preciso dormir melhor hoje.

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