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O Cipreste do Jardim do Príncipe Real



Era mais um dia de sol em Lisboa. O inverno já anunciava a primavera e eu seguia em uma de minhas caminhadas deslumbrado pela cidade aberta, que escancarava seus tesouros a legiões de turistas ávidos por mais de Portugal.


Sozinho nesses tempos, aprendi logo a caminhar pelos grupos de turistas sem me deixar conduzir por suas ondas e correntezas. Fui descobrindo vielas e becos, escadarias e praças, escapando do fluxo de pessoas alegres em seus momentos de lazer.


Já havia cumprido minhas tarefas do dia e andava leve. Sai do Largo do Rato e seguia pela Rua da Escola Politécnica, pretendendo chegar até o Chiado. Na verdade não tinha um destino certo nem horário a seguir, apenas uma ideia de roteiro sem o menor rigor de cumpri-lo.


Já havia passado por ali antes, apressado em chegar à Baixa, região histórica de Lisboa reconstruída após o terremoto de 1755. Dessa vez meus passos eram lentos e meu olhar atento a detalhes, observando portas e janelas, pequenas varandas e águas furtadas dos belos prédios do caminho.


Andava e meditava, olhava e pensava, refletia e me admirava. O que faz uma cidade ser bela e acolhedora? Que parte do que vejo se conecta em mim e se isso acontece, se conecta a quê especificamente?


Por muitas vezes me senti um forasteiro em minhas andanças pela Avenida Paulista, estrangeiro em terra natal em um caminho tantas vezes percorrido. Agora me sinto acolhido e natural em terra estranha, terra de meus avós mas não minha, que de alguma forma me recebe como seu.


Assim passo pelo Museu de História Natural e pelo Jardim Botânico, sem entrar mas fazendo um agendamento mental para um dia visitá-los. Meus passos seguem e chego ao belo Jardim do Príncipe Real, uma bela praça com arvores encorpadas e jardins coloridos.


Circundo a praça sem entrar, caminhando pelas ruas laterais olhando o entorno. Ao fundo uma breve visão do Tejo, olhando por sobre os telhados pois estou no Bairro Alto. Passo pela Embaixada dos Emirados Árabes e decido entrar na praça.


Ouço uma música, um trompete solitário tocando uma melodia familiar.


Sigo por ali e vejo o cipreste. Não sabia então que árvore era aquela, só vim a saber depois. Os galhos horizontais compunham sua copa circular com talvez uns trinta metros de diâmetro. Uma estrutura de metal cuidadosamente construída amparava os galhos, formando um círculo de sombra abaixo da copa do cipreste, com bancos amigáveis aos corpos cansados.


O trompetista estava ali, talvez ensaiando para o show logo mais à noite. Não estava buscando gorjetas, simplesmente tocava, emendando canções que me eram familiares. Não sou um conhecedor de jazz, mas meus preferidos são os trompetistas. Comecei a ouvi-los com o Chet Baker, depois cheguei a Miles e ao Coltrane. Alguns de seus álbuns são meus companheiros em muitos momentos de reflexão, escritas e caminhadas.


Mas não era o caso. Não eram os meus fones, a música vinha daquele homem e seu instrumento, tocando como se estivessem num palco ou mesmo numa ilha deserta. Só ele e sua música interessavam ali. Ele e seu instrumento, seu pensamento e sua música. Reconheci “Nature boy” depois “How deep is the ocean” e então “It never entered in my mind”, a música que me colocou definitivamente em contato com o jazz, primeiro pelo Chet, depois pelo Miles.


Nesse momento eu já estava sentado em um dos bancos sob os galhos do cipreste, a uns três metros do músico. Sentia uma espécie de vibração no peito, como se fosse uma taquicardia leve, mas sem desconforto. Aquele momento nunca poderia ser mais perfeito, com o dia lindo, o local especial, a sombra do cipreste, o banco acolhedor, o trompetista solitário tocando as músicas que eu pediria para tocar se essa fosse a minha liberdade e intenção.


Inebriado eu me questionava. Por que tudo tão perfeito? A luz, o som, o local, a temperatura, o banco, a trilha sonora, o instrumento, o artista?


Como podemos receber um presente assim, irretocável, que nada nem ninguém poderia torná-lo mais perfeito? E por que raios meu peito vibrava? Que sensação era essa de deslumbramento e fragilidade, de encanto pela beleza vista e sentida misturado ao espanto de algo tão perfeito me sendo oferecido assim, como se tivesse descoberto minha alma em seus mais íntimos pormenores e desejos?


Eu queria só ficar e relaxar. Ouvir e me inebriar. Mas meu cérebro não me dava sossego. Isso não pode ser real, dizia. Mas era real, eu respondia, e tentava fazer com que meus pensamentos se calassem. Mas o vibrar no peito não me deixava relaxar, a respiração ofegava. Não era taquicardia, nem falta de ar. Estava longe de ser ansiedade. Mas me incomodava, pois era estranho sem ser desconfortável. O que acontecia em meu corpo não era meu embora fosse. O que eu vivenciava estava ali, mesmo que a perfeição de cada detalhe me mostrasse que nunca seria verdadeiramente possível.


Se isso for mágico, desafiei, continuarão as melodias que eu escolheria para ouvir. E elas prosseguiam. “These foolish things”, “Stella by starlight”, “My funny valentine”.

Não dava mais para disfarçar o incômodo da mente racional. Os pensamentos foram calados pelo total deslumbramento, recolhendo-se ao seu ridículo papel de tentar encontrar sentido onde só havia beleza.


E então mais uma vez “It never entered in my mind”. Nesse momento eu apenas me deixava invadir pelas notas sopradas ao meu lado. A vibração no peito continuava, mas o cérebro calava. As notas entravam em meus ouvidos, se misturavam vibrando por igual em meu peito, tomando conta de mim. Eu não via mais nada ao redor. Sabia onde estava, mas em meu corpo acho que já não era.




Hoje penso que minha alma flutuava, que eu me observava sentado no banco, me via do alto, mas não de dentro de mim. A imagem em minha mente mostra como se eu estivesse me vendo como espectador da cena que eu encenava. Encenava sem nada fazer, imóvel que estava, viajando pelas notas musicais que me levavam para longe e para dentro.


Então acabou. Ele afastou o trompete de seus lábios e o olhou reverente. Trouxe o instrumento ao peito e foi como se o abraçasse, grato pela união de expressão do amor de um e de outro, instrumento materializando seus sentimentos em notas pelo ar.


Limpou o bocal, guardou carinhosamente o instrumento em seu estojo aveludado e então olhou para mim sorrindo. Seu olhar iluminado flagrou meus olhos marejados. Não pude falar nada a não ser murmurar um obrigado acenando levemente com a cabeça, enquanto uma lágrima ousada escorria.


Sempre sorrindo ele juntou suas coisas, colocou um chapéu como se fosse mesmo um musico dos anos 40 e com um leve toque na aba se despediu, seguindo seu destino, seja lá qual fosse.


Minhas pernas estavam paralisadas. Tentei mexê-las mas mesmo que quisesse sair dali, e eu não queria, seria impossível agora. O silêncio se apoderou de tudo, menos das vibrações incansáveis em meu peito.


Já não existia mais o trompete, mas as notas eram ouvidas em meus pensamentos. Estava naquele banco com as pernas paralisadas e então fui jogado em um redemoinho de lembranças através de memórias esquecidas, enrijecidas pelo armazenamento em gavetas emperradas do cérebro.


Eu me vi menino, chorando sozinho no alto da minha árvore preferida. Meu avô tinha partido há poucos dias e naquele jardim tínhamos vivido coisas tão boas.


Me encontrei solitário vagando nas madrugadas das ruas de São Paulo quando decidi me afastar das pessoas que amava para iniciar minha vida profissional. Vivi novamente a dor da falta de um abraço e de uma conversa amiga.


Memórias assim ressurgindo e se impondo de forma alucinante e alucinado eu estava. Todas as outras dores de tantos momentos vindo e dominando peito e alma. Uma dor daquelas já bastava para choros e dramas, mas todas elas juntas era demais para qualquer pessoa suportar. Era demais para que eu suportasse.


Não sei quanto tempo durou, mas todas as minhas dores vividas foram revividas e novamente sentidas acumuladas umas sobre as outras, se atropelando, se debatendo, se impondo. Sentia o peito doer, o coração não cabia ali, a respiração tentava trazer mais ar e expandir o peito para acomodar um coração batendo tresloucado.


Então paz.


Tudo se foi. Todas as lembranças se foram, todas as dores me deixaram. A música em minha mente silenciou.


Minha respiração voltava ao normal quando me lembrei de uma discussão que tivera com um colega. Fui cruel e sacana, disse palavras duras e injustas. Eu o humilhei. Isso já fazia muitos anos, foi no começo da minha vida profissional, mas eu nunca esqueci o quanto eu fui babaca.


Essa era uma daquelas lembranças ruins que às vezes vem à mente sem querer. Mas junto dela outras vieram. Todas as vezes em que fui arrogante, situações em que tratei mal a pessoas simples, em que tive discussões acaloradas com colegas ou familiares e que não evitei usar palavras duras para ofender e magoar desde que eu vencesse as discussões.


Começou um novo turbilhão onde meus erros foram expostos, jogados sem dó em minha face. Como eu pude ser tão idiota, pensava. Todas as dores da auto indignação se somaram, revirando meu estômago, trazendo a vontade de vomitar meu pérfido caráter ali. A respiração outra vez descontrolada acusava a dor dos tapas que recebia. Cada agressão verbal ou ironia que um dia fizera voltava a mim agora. O estômago doía a cada soco recebido. Eu estava naquele banco e sentia o corpo encurvar.


E mais uma vez tudo parou. Silêncio novamente.


Olhei as pessoas passeando e ninguém percebia a minha loucura. Como é possível que eu estivesse passando por tudo aquilo e ninguém me visse retorcido de dor?


Tentei levantar e não consegui. As pernas ainda não obedeciam. Meus pensamentos se acotovelavam. O encontro com o trompetista, minhas canções preferidas tocadas ali e depois as dores e pesares de toda uma vida se jogando contra mim.


Então recomeçou.


Meu peito voltava a vibrar. A respiração já se antecipava e acelerava pelo que temia. O desespero veio, tentei mais uma vez me levantar mas não consegui. Quis falar algo mas a voz não saiu.


Novamente meus pecados e fraquezas jogados em minha cara, sem dó. Revi situações terríveis de submissão a desejos e vícios, hipocrisias, leviandades e egoísmo.

Eu não tinha mais forças para suportar. De uma vez encarei todos os meus fantasmas e demônios, enxergando claramente muito do que me recusei a vida toda a ver. Eu não sabia que era uma pessoa tão ruim e asquerosa.


E novamente tudo silenciou.




Atordoado, finalmente consegui sair do banco. Afastei-me como pude do cipreste, indo até o outro lado da praça ao lado de um canteiro sendo trabalhado por um jardineiro, desses funcionários públicos que cuidam da conservação. Estava perturbado e confuso com o que acontecera.


“Boa tarde”, ouvi o jardineiro e o percebi sorrindo.


“Boa tarde moço”, respondi. Acho que minha voz estava trêmula mas emendei: “O senhor poderia me dizer que árvore é aquela?”


“É um cipreste”, disse


“Cipreste?” questionei


“É um cipreste do buçaco. É da família daqueles ciprestes de cemitério, sabe? Aqueles compridos, que ficam apontando para Deus mostrando o caminho do céu para as almas perdidas, sabe qual é?”


“Sim”, resmunguei pensativo.


Ele ainda me olhava, sorrindo.


“Mas se aqueles compridos apontam para o céu, esse ai que se espalha pela terra mostra o quê?”, arrisquei


Ele pensou, abaixou os olhos e disse: “Mostra o que precisamos superar para chegar lá”. E voltou a cuidar de seu canteiro.


Respirei fundo, olhei novamente o cipreste e o musico estava ali, em pé com o estojo do trompete em suas mãos e sorrindo para mim. Ele tocou novamente na aba de seu chapéu, virou as costas e foi embora.

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