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A simplicidade da saudade



A aleatoriedade das músicas do meu Ipod me trouxe de volta hoje uma canção que há muitos anos não ouvia: Gonzaguinha e sua “Simples Saudade”.


Ouço música assim já faz algum tempo. Desde então é dessa maneira que faço minhas caminhadas pelas cidades. Tem sido assim em todos os locais que visito: as descobertas urbanas e as paisagens se aliam às descobertas ou redescobertas das musicas que vou ouvindo a cada passo.


Gosto disso, de me jogar sem rumo aos locais que visito. Esse sempre foi o meu jeito turista. Decido o primeiro objetivo e todos os demais são definidos para onde se despertam os olhares. Sigo para onde o nariz aponta.


A música foi a minha primeira paixão artística. Tenho até hoje um álbum duplo de vinil do Elvis que ganhei de meu pai quando tinha uns cinco ou seis anos de idade. Meu amor pela arte da música também foi a minha primeira frustração, pela minha total falta de habilidade com ritmos, tempos e notas musicais. Sou um músico frustrado, talentoso nos gostos mas um desastre nas habilidades.


Quem me acompanha por aqui sabe que vez ou outra falo sobre canções. Elas me tocam e inspiram, ficam rodeando a minha mente e os textos decorrentes são obrigatórios, quase uma reverência ao artista e a sua obra, mais precisamente uma constatação do impacto dessas canções em minha vida.


Tenho profundo respeito pela criação e pela obra. Eu nunca seria um crítico de arte, por exemplo. O que me vale é o quanto a obra me toca, não me importo com sua técnica ou outros aspectos que um crítico observa. Assim, nunca me pego achando algo de ruim ou incompleto na arte, apenas compreendo se gosto ou não.


Mas nesse caso, na canção Simples Saudade tive uma longa conversa mental com o autor. Fiquei com a impressão de que o Gonzaguinha ainda tinha muito a dizer, mas concluiu a canção apressadamente. Parou antes do tempo, deixou de falar muita coisa que ainda eu precisaria ouvir:




A saudade que eu sinto Não é saudade da dor de chorar Não é saudade da cor do passado Que deixa grudado o meu pé nesse chão


Não é a tristeza que queima o peito Não é lamentar o que nunca foi feito Não é a doença que acaba com a gente Deixando esmagada a vida no chão


É a estranha saudade do que ainda não vivi É a raça e o sangue de um simples moleque Que leva na ponta da língua a todos os cantos O sal e o doce da palma da mão


É a garra e a alegria de um simples menino Que acredita nas pessoas e no futuro Que seja fruto da força imensa de nossos corações




Poxa vida Gonzaguinha, por que parou assim?


Por que tão pouco querido poeta? Talvez você tivesse pressa, intuindo sua breve passagem por aqui. Talvez tenha dito tudo o que queria, deixando que minhas próprias sensações preenchessem as entrelinhas.


A arte que se completa naquilo que desperta no outro. Sim, compreendo, mas eu queria mais.


Essa letra agora é minha Gonzaguinha. Tenho essa mania, de me apropriar do que gosto como se fosse meu. É assim com as pinturas do Van Gogh também. Elas não precisam estar nas paredes de onde habito pois estão perpetuados nos corredores de minhas lembranças, que percorro nas noites inspiradas em busca de suas estrelas.


Edward Hopper me presenteou com seu “Night Hawks”, Hemingway me deu “ O velho e o mar”, Drummond me deu tantos poemas, Beethoven dedicou a Nona para mim, Quintana manteve um dos meus passarinhos a seu cuidado.


O presente de Edward Hopper



Sou este escritor abusado com alma crescente, me apropriando da obra destes artistas incríveis e simplesmente escrevendo o impacto que me causam, como a minha própria e insuficiente sub-arte.


Fazer o que, é o que sou. Um mero observador sendo sensibilizado pelo que vejo, ouço, sinto.


Portugal é fado, Lisboa é música. A saudade aqui é concretizada em prédios e monumentos, lembrando suas glórias idas. A alma portuguesa é a saudade, não uma saudade triste, mas aquela que olha com reverência ao que foi. E o que sinto por aqui é que é a partir desse olhar saudoso e respeitoso que Portugal olha a frente.





Hoje vi jovens estudantes, uns trinta talvez, em um divertido grupo musical tocando e cantando próximo à praça Dom Pedro IV (o nosso Dom Pedro I, um herói aqui, conhecido como “o libertador”). As fotos sorridentes que trago são desses jovens músicos incríveis.


Aliás, vou enfiar nesse texto (mais) uma opinião: Dom Pedro I deveria ser um herói brasileiro também. A ele se deve a coesão do país, foi o seu pulso forte que impediu a divisão do pais como ocorreu na América espanhola. E seus princípios de liberdade se estenderam a ideais abolicionistas. A escravidão foi um mal terrível herdado dos portugueses, mas a sua abolição tardia se deveu muito mais ao interesse de “forças ocultas” do que aos imperadores. Doente, Dom Pedro I pouco antes de sua morte escreveu uma carta aos brasileiros que dizia:


"Escravidão é um mal, e um ataque contra os direitos e dignidade da espécie humana, porém suas consequências são menos prejudiciais para aqueles que sofrem no cativeiro do que para a Nação cujas leis permitem a escravidão. Ela é um câncer que devora a moralidade"

Assim como caminho sem destino e as musicas se revezam em meus fones, meu pensamento também viaja. De Gonzaguinha a Dom Pedro, da saudade à vergonha da escravidão em poucas linhas. Mas são tantas as coisas a serem ditas quando nos permitimos sensibilizar pela arte e pela história! Duas de minhas mais profundas paixões que me deixam pleno de entendimentos e percepções que alteram o senso comum.


Mas de volta aos estudantes músicos perto da praça: todos eles de saia, com suas capas ao chão, tocando alegres e divertidamente várias canções do cancioneiro português, honrando a arte a cultura de seu povo.


Jovens de vinte e poucos celebrando Amália Rodrigues e sua “Cheira bem, cheira a Lisboa” (na verdade a composição é da fadista Anita Guerreiro, mas é um clássico da Amália).


O vídeo foi feito com meu celular, a qualidade não é lá essas coisas. Mas vale a pena mostrá-lo a quem quiser ver.





Lisboa já tem Sol mas cheira a Lua Quando nasce a madruga sorrateira E o primeiro eléctrico da rua Faz coro com as chinelas da Ribeira


Se chove cheira a terra prometida Procissão tem o cheiro a rosmaninho Nas tascas das vielas mais escondidas Cheira a iscas com elas e a vinho


Um cravo numa água furtada Cheira bem, cheira a Lisboa Uma rosa a florir na tapada Cheira bem, cheira a Lisboa


A fragata que se ergue na proa A varina que teima em passar Cheira bem porque são de Lisboa Lisboa tem cheiro de flores e de mar


Lisboa cheira aos cafés do Rossio E o fado cheira sempre a solidão Cheira a castanha assada se está frio Cheira a fruta madura quando é Verão


Os lábios têm o cheiro de um sorriso Manjerico tem o cheiro de cantigas E os rapazes perdem o juízo Quando lhes dá o cheiro a raparigas


Um cravo numa água furtada Cheira bem, cheira a Lisboa Uma rosa a florir na tapada Cheira bem, cheira a Lisboa


A fragata que se ergue na proa A varina que teima em passar Cheiram bem porque são de Lisboa Lisboa tem cheiro de flores e de mar




Penso em meus avós deixando Portugal e imigrando. Penso na alma imigrante, tão comum na história e talvez ainda mais presente hoje. A tecnologia ajuda, algumas horas concluem viagens que levavam semanas. Hoje vejo minhas filhas por vídeo, mas ainda não as abraço.


Como disse meu querido poeta cantor, a saudade que sinto não é a saudade da dor de chorar, mas a saudade daquilo que a vida ainda irá me trazer. Sou esse simples menino que ama poesia, acredita nas pessoas e vive por reencontros.


Preenchido estou pela alma portuguesa. Uma identificação que vai além da ascendência, que vem da conexão da alma. Talvez por isso sinta e pense sobre a saudade, como sentimento e como objeto, talvez por isso queria mais de ti, Gonzaguinha.








Caso alguém queria assistir à inesquecível Amália Rodrigues, segue o link:






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